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Texto original de Kayla DeGuire publicado no Blog Hering Like Me em Julho, 2019
(link para acesso: https://www.hearinglikeme.com/mild-moderate-hearing-loss-often-overlooked/)
As pessoas com perda auditiva leve e moderada passam frequentemente por situações de negligência ou até mesmo menosprezo quando dependem de serviços, principalmente quando o tema é acesso à educação. Isso pode ter um impacto grande para o desempenho no aprendizado. Karen Putz, audiologista americana, uma vez referiu que “Uma perda auditiva pequena no audiograma pode ser um grande problema se você não tem 100% de acesso da comunicação.” Esse depoimento mexeu comigo.
A perda auditiva leve a moderada
Eu sou o exemplo perfeito de como uma perda auditiva de grau leve a moderado é negligenciado. Passei anos da minha vida numa sala de aula com essa perda. Eu mesma achava que isso não era um grande problema, assim como todos aqueles ao meu redor. Em 16 anos de vida escolar, usei aparelhos por apenas 5 anos, por vários motivos (eram caros, vergonha, necessidade de ajuste). Mesmo sentindo os efeitos de não ouvir, sentindo esse prejuízo, eu reprimi esses sentimentos por muitos anos. E isso continuou no ambiente de trabalho e nas situações sociais. Só depois eu senti o impacto disso tudo.
Ainda assim , eu aprendi que dizer que eu não escutava não era o bastante. Eu fiquei completamente cheia e percebi que precisava me defender. Levei 30 anos da minha vida pra concluir isso. São necessárias habilidades fortes de autoadvocacia (Hiperlink para site ReMic: http://remic.fob.usp.br/modulo-5-depoimentos/ ) para pessoas como eu, que possuem uma perda auditiva, sobreviverem – quanto mais prosperar. Isso me fez pensar, por que o sistema educacional não está preparado para dar esse exemplo pra nós?
É comum que crianças com perda auditiva leve ou moderada usem seus aparelhos auditivos por menos tempo que o necessário por acreditarem que conseguem ouvir e dar conta sem eles. E, quando uma criança se esforça pra ouvir na sala de aula, isso vai demandar ainda mais energia dela. Isso faz com que seja fácil perder o foco. E, quando você perde o foco, perde a atenção, você escuta ainda menos. É uma queda espiral desastrosa, que pode ser diagnosticada erroneamente como distúrbios de comportamento ou aprendizado
Informação que falta
Quando você tem uma perda auditiva leve ou moderada, você nem sempre se dá conta da quantidade de informação que está perdendo na sala de aula. No meu caso, é difícil analisar exatamente o quanto eu perdi. Eu só me lembro que, às vezes eu escutava e às vezes não. É bem difícil pontuar o quão específico era a informação que eu perdia por causa da perda auditiva, porque não é sempre a palavra toda que você perde. Às vezes, é só uma sílaba e sons específicos daquela palavra. Sempre parecia que eu demorava mais pra aprender do que meus amigos em sala e eu parecia estar sempre fora daquele mundo. Por conta disso, eu coloquei na minha cabeça que eu tinha dificuldade pra aprender. Como eu não estava recebendo toda informação da sala de aula, eu estava sempre confusa sobre o que estava sendo discutido em sala de aula e ia pedir ajuda pro meu pai com a lição depois em casa.
“Quando você tem uma perda auditiva leve ou moderada , você nem sempre se dá conta da quantidade de informação que está perdendo na sala de aula.”
Tem muita coisa que eu deveria ter aprendido que eu não sei até hoje. Eu nunca fui a melhor aluna da sala, mas eu sempre me esforçava pra fazer as lições e de alguma forma isso fez com que eu passasse. As pessoas sempre falavam pra mim que eu era aérea, que vivia no meu mundo próprio. Depois, lendo alguns artigos sobre educação eu relacionei tudo isso com pessoas que tinham dificuldades pra ouvir. Estou descobrindo que muitas outras pessoas com perda auditiva enfrentam experiencias parecidas com esta.
Sentar na frente não é o bastante
Devido ao fato de eu ter uma dificuldade pra ouvir, eu sempre era colocada nas primeiras fileiras. Esse era o único lugar que me era oferecido sempre. Por mais que isso ajudava, eu ainda tinha uma tarefa difícil de entender o conteúdo, sozinha. E claro, o pior pesadelo de qualquer pessoa que uma dificuldade auditiva é a situação do professor falar de costas pra turma. Eu não conseguia ouvir de jeito nenhum quando outro aluno em sala falava alguma coisa, porque a fala vinha na direção das minhas costas.
Um artigo publicado na revista Communications Disorders em 2005 (Quarterly in 2005) entrevistou professores sobre os aspectos da perda auditiva mínima na sala de aula. Mais de 55% deles referiu ter tido ao menos uma experiência profissional com esses alunos. Nas palavras do pesquisador “Foi perturbador descobrir que a maioria dos professores (n=16; 35.6%) concordou ou concordou totalmente que apenas a estratégia de posicionamento do aluno em sala era o necessário pra esses alunos”. Outros 15 professores (33.3%) não tinham opinião sobre esse aspecto.” C.J. Dalton, referiu no seu trabalho no Canadian Journal of Education (2013), que “Esse estudo revelou como os professores podem estar despreparados em relação aos desafios que uma dificuldade auditiva pode trazer ao aluno”.
Desafios no Aspecto Social
Quando você senta na frente, nas primeiras fileiras, é muito difícil fazer amizade com os outros colegas da sala. Claro, crianças conversam e sussurram durante a aula as vezes, e eu nunca compartilhava desses momentos, sempre estava “de fora”. Por mais que eu tivesse um grupo de amigos na escola, nunca senti que éramos ligados. Ao contrário, eu sempre me sentia deslocada, fora do lugar. Eu era tímida e, de alguma forma, fazia parte do grupo. A grande questão é que eu queria fazer parte, ter os mesmos vínculos com aquelas pessoas, me sentir integrada. Eu era a única que tinha um aparelho auditivo com aquela idade. Porque eu sempre relacionei o uso do aparelho com idade, pessoas mais velhas, eu parei de usar os meus aparelhos no início do 5º ano. Eu nunca concluí o quanto isso me machucou, tanto do ponto de vista acadêmico quanto social. Eu tinha vergonha de ser diferente.
No Ensino Médio
No ensino médio eu me tornei rebelde. Eu não usava os aparelhos e sequer falava para os professores sobre minha perda auditiva. Sentava no fundo da sala e costumava dormir em aula – ou até ler revistas para passar o tempo. Eu tentava fazer amigos que falavam mais alto, que não seriam necessariamente meus amigos se eu tivesse audição normal. Por causa das pessoas que me cercavam eu me via às vezes em festas, fazendo o que eles faziam. Eu bebia muito, porque eles bebiam. Isso fazia parecer que eu era uma pessoa feliz socialmente, mas por dentro, eu sentia que a minha alma estava morrendo.
Na Faculdade
Eu deixei de usar os aparelhos auditivos até o primeiro ano da faculdade. No primeiro semestre, eu estava numa turma que era sempre dividida em grupos. Ficava evidente o quanto eu não conseguia ouvir. E a última coisa que eu queria era que os outros ali soubessem da minha perda auditiva, eu tinha muita vergonha. Até então eu nunca havia conhecido ninguém com a mesma dificuldade e a minha idade. O professor passava tarefas e dividia a turma em grupos todas as aulas. Enquanto eu estava no meu grupo, nunca sabia o que estava acontecendo. Ou seja, não tinha como eu fingir que entendia. Passei por tantos momentos vergonhosos que eu decidi contar para a professora que eu tinha dificuldade pra ouvir. Na aula seguinte, ela disse, bem alto “todo mundo consegue me escutar?” e voltou ao seu tom normal de voz, que eu não conseguia ouvir.
Ill-Usando Aparelhos Auditivos
Eu tinha muita vergonha da minha perda e zero de habilidades para autoadvocacia. Nem tinha ideia de que uma coisa chamada “gabinete da deficiência” existia e que eu tinha direitos para acessibilidade . Foi preciso muita coragem pra falar sobre a minha perda auditiva. Eu me lembro de me sentir esmagada e sabia que precisava fazer alguma coisa para evitar que fosse vista pelos meus colegas como aquela que sempre estava perdendo, por fora do que estava acontecendo.
Eu concluí que precisava dos aparelhos auditivos – e logo. Um lugar poderia me entregar eles em duas semanas, o que significava só mais duas semanas de vergonha na sala de aula. Foi um investimento pago em mais de 5 vezes. Mas, eu não tinha me dado conta que eram necessários ajustes. Eu tinha lapsos de distração e ainda bastante dificuldade pra ouvir os professores. Isso fez com que eu acreditasse que eu tinha um déficit no processamento do cérebro. Eu usei os aparelhos por um período curto e parei novamente. Tinham muitas aulas que eu assistia que eu só lia os slides e o que estava escrito na lousa, sem entender nada do que estava sendo dito.
Na Sala de Aula
Eu sei que a minha experiência na escola não é a única. De acordo com Dalton, a perda auditiva é uma dificuldade de comunicação que pode impactar o desempenho de linguagem, a educação e os aspectos sociais e emocionais necessários para qualidade de vida. Como esses alunos podem não ter dificuldades na fala, os professores podem ignorar facilmente seus desafios e conseguirem a inclusão plena desses alunos em sala de aula. A sala de aula é um ambiente crucial para que crianças desenvolvam habilidades importantes. Por esse motivo, eu acho que é um dos lugares mais importantes para garantir acesso igual para todos os alunos em sala. Por isso, eu proponho:
Um apelo pra ação:
Planos individuais de desenvolvimento escolar para todos os níveis de perda auditiva. Professores auxiliares podem ajudar, até mesmo para crianças com perdas mínimas. Esses professores auxiliariam em tudo que faz a criança sofrer, todas as dificuldades, certificam que a criança está usando o aparelho e até o sistema de FM.
Conhecer outras crianças que possuem dificuldades semelhantes, que possuam perda auditiva. Seria muito bom ter outras crianças com perda auditiva na mesma sala, mas dificilmente isso acontece. Isso ajudaria para que as crianças com perda auditiva não se sentissem tão isoladas.
A língua de sinais pode ajudar. Não é a falta de audição que “machuca” o cérebro, é a falta de linguagem, de compreensão da fala. A língua de sinais pode ajudar em todos os graus de perda auditiva, eu acho que a proposta bilíngue pode ajudar muito.
Campanhas de conscientização com foco em professores, pais e o público em geral.
Acompanhamento indivudual dos professores com o aluno.
Ensine as crianças como advogarem por si mesmas. Deixem que saibam que é normal dizerem que não entenderam.
Referências
Dalton, C. J. (2011). Social-emotional Challenges Experienced by Students Who Function with Mild and Moderate Hearing Loss in Educational Settings. Exceptionality Education International, 21(1), 28-45.
Dalton, C. J. (2013). Lessons for Inclusion: Classroom Experiences of Students with Mild and Moderate Hearing Loss. Canadian Journal of Education.
Richburg, C. M., & Goldberg, L. R. (2005). Teachers’ Perceptions About Minimal Hearing Loss. Communication Disorders Quarterly, 27(1), 4-19.